A Contradição Humana

ricardolind001“Errare humanun est” (Errar é humano) é um provérbio latino tão antigo que sua origem já é desconhecida; contudo, o seu conteúdo parece cada vez mais atual. Estamos já acostumados a conviver com os erros humanos ou, em outras palavras, com as contradições dos seres humanos. Os filósofos desde tempos imemoriais, bem como todas as religiões do mundo, falam da fraternidade e da paz; no entanto, além das absurdas guerras entre grupos religiosos fanáticos, corre-se o risco de uma guerra atômica que exterminaria a raça humana.

Avalia-se um milhão de dólares por minuto o gasto na produção de novas armas nesse planeta, sem levar-se em consideração o custo de manutenção dos exércitos, as fortunas que nutrem o tráfico de entorpecentes e outras formas de degradação. Enquanto isso, diariamente, morrem quarenta mil crianças de problemas derivados da subnutrição no mundo em desenvolvimento; sem falar nas mortes não menos estúpidas dos suicidas dos países desenvolvidos ou das decorrentes de guerras e atos terroristas que pretendem buscar a paz e o bem estar da Humanidade através de qualquer meio. Por que falamos tanto em amor e paz e vivemos nesta violência impressionante ?

Sabe-se hoje que seria possível resolver os problemas da fome, saúde e educação do gênero humano somente com os recursos há pouco citados, de forma que se torna difícil justificar tanta miséria. Entretanto, enquanto os sistemas de direita e esquerda justificam-se reciprocamente no “empilhamento” de bombas, e os terroristas ficam a justificar sua covardia com ideais de justiça, o mundo agoniza. Não é tudo isso incrivelmente contraditório ?

É também conhecido o fascínio que o ser humano tem pelo poder e as mórbidas “necessidades” daí decorrentes. Talvez seja mesmo a vaidade e o anseio pelo poder que criem todo esse cruel panorama no mundo. Curiosamente essa “necessidade” de impor a sua vontade e exercer o poder sobre os outros apresenta-se de modo geral, diretamente proporcional à incapacidade de o ser humano dominar-se a si mesmo. Pode haver maior contradição ?

O ideal da filosofia platônica já era, como teria colocado Sócrates, que o homem se tornasse “senhor de si mesmo” após ter conhecido a si próprio; enquanto no Oriente, Buda,  quase na mesma época, dizia que “mais glorioso não é quem vence em batalhas milhares de homens, mas sim quem a si mesmo vence”.

A sra. Rada Burnier, conhecida conferencista, Presidenta Internacional da Sociedade Teosófica, tem afirmado que “não se pode perguntar agora se a paz mundial é uma possibilidade, pois ela é uma absoluta necessidade. Sem fraternidade, cooperação e paz, a Humanidade pode cessar de existir”.

Enquanto isso, a Ciência e a Tecnologia, lastimavelmente atrelada a interesses políticos, estão hoje a construir bombas atômicas poderosas que fazem daquela que destruiu Hiroshima, há quarenta anos, um brinquedo para crianças. Dessa forma, torna-se fácil ver que, quanto mais poder o ser humano tiver antes de resolver a sua contradição, tanto pior será para a vida neste planeta: e a solução da contradição do homem encontra-se dentro dele mesmo e não fora. É porque o homem não é “senhor de si mesmo” que ele se torna perigoso. Seu conflito interior, sua contradição expressam-se em tudo que ele faz.

Quanto mais conhecimento e poder dermos ao homem, tanto pior será, não porque o conhecimento e o poder sejam deletérios em si, mas porque o homem, estando perturbado,  em contradição de à falta de autoconhecimento, não pode ter autodomínio. E não é um tanto quanto temerário dar-se poder a quem não possui autodomínio ? Nossa civilização tem subestimado o autoconhecimento, considerando-o coisa de pouco valor prático à mercê  dos caprichos e infantilidades de seres humanos contraditórios e imaturos.

O QUE É UM HÁBITO ?

Por que homens como Sócrates e Buda, já há tanto tempo, consideravam o autoconhecimento como fundamental ? Iniciemos nossa investigação analisando o problema do hábito. O que é um hábito ? Para tentar responder, consideremos como funciona o cérebro. Cada pensamento, de acordo com sua característica, aciona uma corrente elétrica num circuito específico de neurônios cerebrais. Isso ativa aqueles neurônios daquele circuito. A reincidência nesse mesmo pensamento ativa os mesmos neurônios em detrimento,  relativamente da grande maioria que são os outros. Assim, a repetição da mesma corrente elétrica através do mesmo circuito de neurônios cria uma situação que favorece cada vez mais a repetição do mesmo processo.

Por esse motivo, o pensamento, a emoção e a ação são processos produtores de hábitos. Isso pode tornar-se bem mais evidente se nos lembrarmos de que o neurônio é uma célula viva e, portanto, particularmente mais sensível à repetição dos estímulos do que um simples circuito elétrico que é inerte. Caso nós nos aprofundemos nessa questão, descobriremos, talvez com espanto, que características de nossa personalidade, com as quais nos identificávamos como sendo “nós mesmos”, não passam de hábitos: reações “mecânicas” do nosso passado. São condicionamentos com os quais nossa consciência se identificou. Desta forma, estaremos começando a descobrir quão pouco nós conhecemos de nossa real natureza.

AUTOINVESTIGAÇÃO

É comum ver-se o ser humano fugir das questões que exigem profunda atenção, porque é mais fácil receber ensinamentos prontos e repeti-los, como até um papagaio pode fazer; mas o autoconhecimento não pode ser fornecido por terceiros: ele só pode ser fruto de nossa própria investigação. Porém, pode ser de alguma utilidade fazer algumas considerações introdutórias sobre o tema, mas que, evidentemente, não podem jamais substituir a autoinvestigação.

Pode-se observar que a pessoa humana é constituida de diversas “vontades” que, não raramente, se contra-dizem, por exemplo, quando estamos assistindo a um filme ou a uma novela na televisão que nos empolga, gerando emoções que sentimos vivamente, pode surgir um conflito entre a vontade e a sensação, que quer continuar assistindo ao filme, e um eventual apelo do corpo por descanso, que se manifesta por meio de uma crescente sensação de “peso” nas pálpebras. A fome, a sede, etc, podem gerar conflitos similares. Isso demonstra de maneira bastante prática que a vontade do corpo e a da sensação nem sempre coincidem, e não é raro observar as pessoas levarem seu corpo a excessos, devido a sua paixão momentânea despertada por alguma sensação.

Ora, fôssemos o corpo, nossa vantagem sempre se identificaria com a vontade dele e jamais ocorreria conflitos ou excessos, pelo menos no que tange à saúde física, e estaríamos, antes de mais nada, preocupados com nossa saúde física. Como costumava dizer o Eng. J. Lutzenberger, ecologista internacionalmente reconhecido, se fôssemos verdadeiramente materiais, estaríamos, antes de mais nada, preocupados com nossa saúde física e com a conservação ecológica do meio ambiente; entretanto, nossa “civilização” não tem demonstrado isso. A grande massa da Humanidade tem estado preocupada com a sensação, mesmo que isso tenha acarretado perda de saúde, acionado a ambição, causado guerras e desastres ecológicos. Se um indivíduo, ao dizer-se materialista, e assim, identificando-se com seu corpo físico, age dessa maneira, não é isso profundamente contraditório ?

É curioso notar que a vontade da sensação e a emotividade, às vezes, desvia a vontade que quer concentrar a mente, como, por exemplo, quando queremos resolver um problema de matemática ou fixar a mente no trabalho que estamos tentando realizar e a emoção nos desvia o pensar para questões afetivas, namorada, esposa, filhos etc, ou talvez ainda surja uma fome estranha justo nesse instante, e, então, a vontade do corpo começa a lutar contra a vontade que quer concentrar a mente. Platão no século IV AC já havia dividido a alma do homem em três partes. Eram, conforme encontramos em “A República”: a apetitiva (sede dos desejos de sensações e ganhos), a arrogante ou irascível (sede da coragem e busca do poder e fama) e a inteligível (sede da razão ou compreensão e busca da verdade). Se somarmos isso a preguiça e busca de conflitos do corpo físico, já teremos uma noção intelectual da complexidade do homem e da grande possibilidade de conflitos e suas “vontades”.

Ainda mais  antigo, o Katha Upanishad da tradição hindu nos diz: “Saiba que o ser é passageiro e o corpo a carruagem; que o intelecto é o cocheiro e a mente, as rédeas”. “Os sentidos”, diz o Sábio, “são os cavalos, as estradas que percorrem são os labirintos do desejo”.  Nessa bela alegoria oriental podemos observar que, pelo menos, o cocheiro (o intelecto – veículo do pensamento concreto – alma arrogante) e os cavalos (os sentidos – “instrumentos” das sensações – alma apetitiva) são seres que têm vida própria, ou vontade própria, independente da vontade do passageiro (o Ser – o Eu Superior – a alma inteligível, causa do pensamento abstrato). Pode-se tentar compreender essa ideia oriental de que o pensamento e a emoção ou sensação têm vontade ou vida própria se nos lembrarmos de que o cérebro, por onde eles transitam quando estamos em consciência de vigília, é constituído de células vivas chamadas neurônios cerebrais. Até a memória tem relação com regiões do cérebro.

Logo, como já vimos, cada pensamento, emoção ou ação são um estímulo que produz certa impressão nos neurônios, gerando hábitos. Essas tendências ou hábitos assim gerados fazem com que os efeitos desses pensamentos, emoções e ações permaneçam conosco como impressões (chamadas de Samskaras pelos yogues orientais) por um tempo proporcional À intensidade e ao número de reincidências dos mesmos. Em seu comentário sobre os Yoga-Sutras de Patanjali, o tratado milenar da Raja Yoga, o doutor I. K. Taimni nos diz “que o homem comum, vivendo no mundo, está sujeito ao longo de todo o dia a todos os tipos de impactos e ele reage a esses impactos de acordo com seus hábitos, preconceitos, educação ou humor do momento, de acordo com sua natureza, como nós costumamos dizer. Essas reações envolvem, na maioria dos casos, maiores ou menores perturbações da mente, dificilmente existindo qualquer reação que não seja acompanhada por uma agitação dos sentimentos ou da mente. A perturbação de um impacto dificilmente teve tempo de cessar antes que outro impacto tire-a do equilíbrio novamente. Às vezes, a mente dá a impressão de estar aparentemente calma, mas essa calma é apenas superficial. sob a superfície, há uma corrente submersa de perturbação, como o marulho num mar superficialmente calmo.

Essa condição da mente, que não precisa ser necessariamente desagradável e que é tomada como natural pela maioria das pessoas, não conduz, em absoluto, à unidade de propósito e, enquanto ela dura, resulta necessariamente em Vikshepa: a forte tendência da mente de estar voltada para o exterior”. É essa a razão porque parece difícil ao homem comum o autoconhecimento: a própria agitação de sua mente revolve o fundo, tornando impossível a percepção  nítida das zonas mais profundas. Por isso, a Yoga busca, em primeiro ligar, serenar a mente, para que seja possível ao homem decantar as impurezas do fundo, tornando assim límpida a percepção, nas profundezas de si mesmo, da sua real natureza. Nessa busca de serenar a mente, é indispensável a atenta observação. pode-se descobrir que há emoções, ou estados mentais, que poderíamos classificar como pesados, em contraposição a outros mais leves que não aprisionam a nossa consciência.

DEPRESSÃO, UMA EMOÇÃO PESADA

Tomemos como exemplo a depressão. Sabidamente ela é uma emoção pesada, porque, uma vez estabelecida, é de difícil remoção. Enquanto ela perdura, a consciência sente-se perturbada e aprisionada, porque a depressão é uma emoção que entra em dissonância com a nossa real natureza, impedindo que nosso Ser encontre possibilidade de expressar-se. Em contrapartida, quando sentimos a emoção leve da alegria, o nosso Ser consegue expressar pelo menos algo de sua natureza real e, por isso, a felicidade flui  de dentro para fora sem obstáculo: a consciência sente-se livre. Como vimos que as emoções e os pensamentos são decorrentes de hábitos, e como vimos que há estados pesados e leves, surge a ideia de transformar nossos hábitos emocionais e mentais. Essa arte de transformação dos estados psicológicos era conhecida entre os antigos como meditação e visava a libertação da consciência.

SUBSTITUINDO OS PENSAMENTOS

Uma das técnicas mais elementares de meditação é a substituição. Está baseada no fato de que a mente só se ocupa com um pensamento de cada vez, de modo que a melhor maneira de se livrar de uma emoção pesada é substituí-la por uma leve. Um lama tibetano deu, certa vez, a seguinte instrução a seu discípulo: “Nunca te permitas sentir triste ou deprimido. A depressão é má porque contamina os outros e torna as suas vidas mais difíceis, o que não tens o direito de fazer. Portanto, sempre que ela vier a ti, rechaça-a imediatamente. Deves ainda controlar o teu pensamento de outro modo: não deves deixá-lo vaguear. Fixa o teu pensamento no que quer que estejas fazendo, para que possa ser feito com perfeição, não deixes tua mente ociosa, mas mantem sempre nela bons pensamentos em reserva, prontos a avançar no momento em que ela estiver livre”.

A linguagem simples da citação acima esconde uma série de leis que regem o mundo da mente; aconselhamos o leitor a descobri-las. Comentaremos algo sobre uma delas que está relacionada com a expressão “rechaça-a imediatamente”. Se observarmos, poderemos descobrir que as emoções nutrem-se das imagens mentais: os pensamentos. Por isso, a maneira correta de adquirir auto-domínio sem acumular repressões inconscientes é dirigir a energia do pensamento para estados leves, pois assim, por falta de nutrientes, os estados pesados gradualmente perderão força. Isso acontece automaticamente mesmo que não estejamos conscientes do processo.

A emoção, o querer, nutre-se do pensar de maneira semelhante ao fogo. Se deixarmos cair um palito de fósforo aceso num tapete é fácil apagá-lo: basta um rápido movimento do nosso pé e o fogo estará extinto. Entretanto, se por desatenção ou ignorância, deixamos passar uns poucos instantes, perderemos rapidamente o domínio da situação e em menos de cinco minutos teremos um incêndio. Muitos morreram por terem dormido com um cigarro aceso. De maneira muito semelhante, como dizemos, é a emoção nutrida pelo pensamento. É fácil controlar qualquer estado emocional em seus momentos iniciais; entretanto, costuma ser difícil libertar a consciência de emoções pesadas depois dos poucos minutos que elas necessitam para se fortalecerem e se estabelecerem.

Há pessoas que se deixam envolver tanto nesses estados lamentáveis de ódio, tendências suicidas, etc, que perdem completamente o controle. Diz um provérbio chinês: “Um momento de paciência pode evitar um grande desastre; um momento de impaciência pode arruinar toda a vida”. Se nós estivermos sempre a observar vigilantes os movimentos da mente, de momento a momento, pode-se adquirir de modo gradual um domínio de nossos estados psicológicos. Faz-se isso usando a dispersão usual do pensamento a nosso favor, substituindo-os prontamente sempre que necessário.

No caso da depressão, por exemplo, quando percebemos que o pensamento está querendo trilhar os labirintos dos nossos problemas sem solução à vista, e que são os que usualmente nos deprimem, chamemos prontamente à nossa atenção os nossos “bons pensamentos em reserva”, substituindo, assim, os anteriores que nos conduziram aos estados pesados. São técnicas elementares, se comparadas a outras mais avançadas, porém são eficazes e precisamos dominá-las antes de poder usar as outras com segurança.

Eventualmente descobrimos que toda a felicidade vem de dentro, mas alguns seres ou objetos são mais aptos do que outros para refletir o nosso interior para nós mesmos. Esses serão, para nós, os mais valiosos. todavia, enquanto não se descobrir o valor real de cada ente que nos cerca, não poderá haver verdadeira harmonia e, por conseguinte, haverá contradição e conflito. Só quando o indivíduo consegue refletir sobre si, o seu próprio Ser, conhecendo sua real natureza, é que ele consegue atribuir o valor correto. Então cessa a contradição, a harmonia se estabelece e descobre-se que a luz da felicidade nunca veio do exterior, mas sempre do interior, toda vez que nossas nuvens de desejos não a obscurecem, e que ali, ela permanece inabalável.

Ricardo Lindemann, presidente da Sociedade Teosófica do Brasil